O barco de pesca Changri-lá

Por: Elísio Gomes Filho

Cujo afundamento e morte dos dez tripulantes foi causado pelo submarino alemão U-199.

O dia 6 de junho de 2004 se transformou numa data memorável para a história de Arraial do Cabo, quando na manhã sublime deste dia, o nome de sete de seus pescadores foram imortalizados no Monumento Nacional aos Mortos da II Guerra Mundial. Deveras, foi um marcante acontecimento, uma vez que ocorreu décadas depois do monumento ter sido concluído em 24 de junho de 1960, para onde foram transladados os restos mortais de nossos pracinhas e aviadores, vindos em urnas funerárias, do Cemitério Militar Brasileiro de Pistóia (Itália).

No dia 6 de junho de 2004, o Monumento aos Mortos da II Guerra Mundial erguido no Parque do Flamengo, estava radiante. Não era por menos, pois em um trecho daquele monumento que cobre uma área de 6.850 metros quadrados, encontrava-se tomado por uma gente emocionada. Quando ali cheguei apressado, junto com meus colegas do curso de História da Veiga, já podia avistar o povo de Arraial do Cabo, reunido na plataforma, esperando o momento em que seus parentes seriam eternizados. Fui logo de encontro aquela gente e no meio dela, com a minha filha no colo, a Emilly, contemplava de um lado, a escultura de Alfredo Ceschiatti (representando irmanados, soldados das três Forças Armadas) e do outro, o pórtico de 31 metros de altura, constituído por dois “pilones”, em cuja base se encontra o túmulo do soldado desconhecido e lá em baixo, observava a cerimônia da troca da guarda que fluía de forma cadenciada e solene. Lembrei que em algum lugar, o cineasta Flávio Cândido estava a registrar com sua câmera as imagens de todos os movimentos humanos significativos, pois ele sonha em fazer um documentário sobre a história do Changri-lá. De fato a história do Changri-lá e de seus tripulantes é digna de ser registrada em um filme.

As tropas desfilavam diante da escadaria que dá acesso à plataforma onde o povo de Arraial do Cabo encontrava-se silencioso. Depois que a guarda da Marinha recebeu dos soldados do Exército a incumbência de guardar pelos próximos três meses o monumento, enfim o povo de Arraial do Cabo se dirigiu para o subsolo, através de uma escadaria em mármore perlado lustrado. Lá se encontra a câmara fúnebre, onde se contempla os mais de 460 jazigos de mármore preto nacional com tampas de mármore de Carrara, os quais tem gravados, o nome, graduação ou posto, unidade, data de nascimento e morte dos soldados e aviadores brasileiros que tombaram na Itália. Vimos à esquerda, na parede, do início ao fim do grande salão, gravados, os nomes dos navios e dos homens das Marinhas de Guerra e Mercante, dos militares do Exército mortos nos torpedeamentos e dos combatentes não identificados.

Depois dos discursos das autoridades, os familiares representantes dos pescadores, descerraram o pano. Muitos aplausos e emoção, lágrimas incontidas escorreram pelas faces dos espectadores, em sua maioria, mulheres, marcadas pelo sofrimento infringido pela guerra. Ali encontrava-se diante de todos, gravados, os nomes dos seus intrépidos trabalhadores do mar, cabistas: José da Costa Marques, Deocleciano Pereira da Costa, Apúlio Vieira de Aguiar, Ildefonso Alves da Silva, Joaquim Mota Navarra, Zacarias da Costa Marques e Otávio Vicente Martins. Enfim, imortalizados.

Agora, esses pescadores cabistas, fazem parte e de modo muito peculiar, de um episódio histórico que mudou de um lado a história da humanidade e do outro, a vida de humildes famílias da heroica Arraial do Cabo. Trata-se de um povo gerador de uma sofrida e destemida classe de trabalhadores, pois mesmo sabendo do perigo que estavam expostos quando saíam para o alto mar no período de beligerância causado pela Segunda Guerra, os pescadores cabistas não se intimidavam. Trabalhar era preciso, pois suas famílias em casa e em terra firme e segura, precisavam sobreviver. Vale dizer que uma das áreas mais perigosas para a navegação aliada, situava-se exatamente na costa e ao lago de Arraial do Cabo. Nessa zona, onde a costa brasileira muda abruptamente de direção, os submarinos ficavam a espreita de fazer novas vítimas.

O próprio algoz do Changri-lá, o U-199, havia torpedeado, sem sucesso, próximo a ilha do Farol, um navio tanque norte-americano – o SS Eagle – no dia 25 de junho de 1943, ou seja, um mês antes de destruir o barco de pesca Changri-lá. Diga-se de passagem que no mês de julho daquele ano, seis submarinos nazistas foram afundados, um deles, graças a informação fornecida por um anônimo pescador.

O U-199 e sua tripulação

Do subsolo resplandecido pelas pulsantes emoções e pela luz dos refletores advindos dos aparelhos da mídia televisiva que fazia a cobertura da solenidade, nos conduzimos de volta a entrada do subsolo, onde se encontra os painéis que representam, em cerâmica, aspectos representativos da vida e da luta no mar, e tem, no sopé, os nomes dos navios brasileiros torpedeados. O pano azul, estava a encobrir o nome do Changri-lá. E logo após alguns dizeres de minha parte, eu e mais duas descendentes dos mortos do barco, expusemos enfim o nome do Changri-lá à história, à eternidade.

Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial – Parque do Flamengo, Av. Infante Dom Henrique, 75, Aterro do Flamengo, tel. (21) 2240-1283. Um dos cartões-postais da cidade, o monumento foi projetado por Marcos Konder (1927) e Hélio Ribas em 1956 e concluído em 1960. “Pela complexidade do espaço, que reúne monumento, museu e mausoléu, considero essa uma das mais importantes realizações do modernismo”, avalia o arquiteto William Seba Mallmann Bittar, professor de arquitetura da UFRJ. Além do túmulo ao soldado desconhecido, a plataforma de concreto em L abriga esculturas de Alfredo Ceschiatti representando as três armas. O maior destaque, contudo, é o pórtico formado por duas hastes paralelas de granito com 31 metros de altura encimadas por uma placa de concreto encurvada de 220 mª. No subsolo ficam 468 jazigos, e no térreo estão um museu, o jardim interno, um lago e dois painéis de Anísio Medeiros.

Elísio Gomes Filho é mergulhador, escritor e historiador, sendo autor de livros sobre tragédias marítimas e foi fundador do Museu Histórico Marítimo do Cabo Frio (1987) e do Museu Histórico Marítimo de Armação dos Búzios (2001), cujos acervos foram doados ao Museu Oceanográfico de Arraial do Cabo. Entre suas pesquisas, encontra-se aquela que veio elucidar o caso do desaparecimento do barco-de-pesca “Changri-lá”, sobre o qual descobriu que a pequena embarcação brasileira foi atacada pelo U-199 em julho de 1943. Hoje, os nomes dos dez pescadores do “Changri-lá” encontram-se, imortalizados, no Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial no Aterro do Flamengo.

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