O Sol revoltara-se contra o Japão!
Foi assim que, supõe-se, muitos habitantes interpretaram, nos segundos que antecederam as suas mortes, aquele clarão imenso, cegante, que se expandiu frente a seus olhos. Outros, mais à distância do hipocentro da explosão, que se deu a 580 metros acima da Ponte Aioi, ainda puderam ver como os ferros se retorciam, como as paredes se esfarelavam, e como o chão embaixo deles ardia.
Os físicos calcularam depois que, nas proximidades da explosão primeira Bomba Atômica, a temperatura oscilou entre 3 a 4 mil graus, o suficiente para fundir o ferro por duas ou três vezes. Pelas ruas daquela cidade, que, em 1945, abrigava não mais de 350 mil habitantes, cavalos e bois enlouquecidos pelas queimaduras disparavam em todas as direções.
Os humanos viam desprender-se a pele, o descarnar-se das suas mãos, enquanto seus cabelos pulverizavam-se em milésimos de segundo. De outros, os olhos simplesmente saltavam das órbitas. A nuvem que os cobriu por apenas 30 segundos avançou por 11 quilômetros, devorando tudo que encontrou pelo caminho, fosse humano ou material. Incinerou tudo a sua passagem. Quando finalmente fez-se silêncio, 140 mil pessoas tinham perecido pelas mais terríveis e diversas formas que se possa imaginar.
A Explosão
Shigematsu estava na estação Yokogawa, próximo à Hiroshima, quando a bomba explodira. Mal saltara do trem quando viu ao longe uma intensa claridade expandindo-se. Algo jamais visto. Em segundos, fora atingido por uma corrente de ar quentíssimo. A multidão que saltara dos vagões apavorou-se. Tomando a forma de um confuso e estridente vagalhão humano, desatara numa corrida desesperada tentando salvar-se daquele sol incandescente. Ele, instintivamente, agarrou-se numa pilastra para não ser levado por aquela tropelia de desesperados. O calor da pele o assustou, sentiu-se ardendo. Mas isso não fora nada perto do que ele viu no dia seguinte.
Por quilômetros tudo, mas tudo mesmo, em Hiroshima estava calcinado, retorcido, arruinado. A cidade simplesmente evaporou. No rio Ota boiavam milhares de cadáveres. Eram os corpos daqueles que se jogaram na água para tentar atenuar as queimaduras sofridas. Gesto inútil. O próprio Shigematsu, ao contrário da sobrinha que escapara ilesa, começou a sentir os sintomas da radiação. Um desânimo tomava conta dele enquanto pústulas cresciam no alto da cabeça dele. Os cabelos se foram e os dentes se afrouxaram. Mas, ao contrário dos 140 mil outros habitantes de Hiroshima, incinerados na hora ou mortos dias depois, ele conseguiu continuar vivo.
Passado um pouco das 8 horas da manhã, Shigematsu chegara a ouvir o vôo solitário do B-29 Superfortress (pilotado pelo Tenente-Coronel Paul Tibbets) que cruzara pela manhã os céus de Hiroshima. Era o Enola Gay que transportava o artefato atômico, o Little Boy (o Garotinho), como carinhosamente o pessoal de Los Alamos apelidara a bomba atômica de 7 toneladas de peso. O capitão que pilotava o avião, batizara-o com o nome da sua mãe. Então com 30 anos, ele fora escolhido a dedo pelo general Leslie Groves, o chefe do Projeto Manhattan, para aquela missão especial. Tinham-no como um dos comandantes mais experientes da USAF, a força aérea americana.
A viagem da ilha de Tiniam no arquipélago de Guam até a ilha de Honshu, onde ficava Hiroshima, durara seis horas de vôo. A bomba fora lançada às 8h15 da manhã, a cerca de 31.000 pés de altitude (9450 m). Explodiu no ar, quando chegou a uma altitude de 1.800 pés do solo (550m).
Missa para os insetos mortos
Numa entrevista recente Tibbets, hoje um bem sucedido homem de negócios, disse que, lançada à bomba, “num micro-segundo a cidade de Hiroxima deixou de existir”. Dos 350 mil habitantes que lá viviam nunca se soube ao certo quantos afinal restaram, pois muitos foram morrendo aos poucos, carcomidos pelo câncer e pela leucemia.
Era costume na ilha Honshu, depois da colheita, os agricultores celebrarem uma missa aos insetos mortos. Era um cerimonial estranho no qual eles faziam bolinhos de arroz para alimentar a alma dos insetos que eles, sem querer, esmagavam na época da safra quando tinham que percorrer os campos. Nunca se soube que os americanos mandassem rezar missa para os desgraçados que eles calcinaram em Hiroshima. Aliás, agora em 2005, tomados pelo furor patriótico da Era Bush, eles voltaram a expor o Enola Gay no Museu Smithsonian em Washington, como que para mostrar ao mundo o que eles estão dispostos ainda a fazer.
Hiroshima sob a chuva negra
Aos moradores de Hiroshima e das suas redondezas não bastou terem sofrido o maior ataque atômica da história da humanidade, consumado em 6 de agosto de 1945. Os que sobreviveram à catástrofe foram vistos depois como uns amaldiçoados, almas penadas de quem todos queriam distância. Muitos dos que inicialmente escaparam com vida, sofreram de doenças cancerígenas que os levaram a uma morte longa e dolorosa, enquanto que outros, particularmente as mulheres mais jovens, foram colocadas na situação de párias, de intocáveis, porque suspeitavam que elas não pudessem mais gerar filhos saudáveis. Nunca os americanos, autores do bombardeio atômico, transcorrido decênios do ocorrido, manifestaram pesar pelo estrago ou arrependimento público pela matança que premeditadamente provocaram.
O significado do Sol para os japoneses
O Sol é, na maioria das culturas, universalmente reverenciado como a fonte da vida. É a grande estrela que nos traz a luz do dia e nos permite vislumbrar, pegar ou apalpar, as coisas que antes, na escuridão, apenas pressentíamos. Por isso, os gregos o identificaram com Apolo, seu deus favorito, e Platão, o maior dos seus filósofos, tinha-o como o mais magnífico símbolo da razão.
Porém, além de ser esclarecedor, o Sol também pode ser perverso, pois sua claridade excessiva pode cegar e o seu calor desmedido levar todos à loucura. Se for muito insistente, devastará as colheitas, queimará as matas, secará os rios e as gargantas, levando todos a morte. Por esses seus outros atributos, não positivos como os primeiros, é que chamavam também Apolo de sinuoso.
Os japoneses, por sua vez, tinham mais do que todos uma relação especial com o Sol. Não só o Grande Astro estava no centro da sua bandeira nacional, uma bola vermelha circundada por um pano branco, como a própria designação do país originava-se da palavra ol: Jin-pun, em chinês, deu origem Nipon, “o país da origem do sol”. De fato, era lá, nas mais de três mil ilhas que compõem o Japão, que a humanidade contemplava por primeiro seus raios brilhantes. Delas é que, antes dos outros povos, pode-se ver o alvorecer.
Imagine, portanto, a surpresa e a perplexidade da população de Hiroshima quando verificou que o sol, aquele mesmo sol que poucas horas antes havia nascido no malfadado dia de 6 de agosto de 1945, ao invés de seguir dali para irradiar outras terras, simplesmente desabou sobre a sua cidade.